Saturday, December 17, 2016

O andarilho

Ele estava ali, parado na frente de um hostel qualquer, esperando. De um lado, seu violão dentro da capa preta, apoiado na parede. Sobre o vão da janela, uma garrafa de vinho aberta. No vão entre o vinho e o violão, estava ele, com o seu celular na mão, esperando ela chegar.

(*) Foto: "O sol e as sombras"
(gentilmente cedida pelo querido António Delicado)
A rua estava um pouco escura, mas, ainda sim, ela o reconheceu de longe. Achava que o encontro seria, no fim, um grande desencontro... mas, para a sua sorte, estava enganada. Eles se resolveram com poucas palavras e lá estava ela andando no seu ritmo usualmente acelerado para encontrá-lo.

Abraçaram-se com um abraço quentinho como se não se vissem há tempos (quando, na verdade, estavam separados há apenas uma tarde). Fazia muito frio naquela noite. Ela havia subestimado o frio; ele, por sua vez, usava um poncho. Caminharam lado a lado até a pracinha da cidade, conversando, sem pressa.

Quando chegaram, ele deixou o violão de um lado e a garrafa de vinho de outro. Ela descruzou os braços, tentando decifrar o que aconteceria em seguida. Quando finalmente ficaram frente a frente, trocaram olhares. Ele, então, a puxou pela cintura e a beijou com um beijo gostoso, sem pressa.

Conversaram sobre a vida, viagens, loucuras, limitações, família, expectativas... o frio fazia com que os dois ficassem cada vez mais próximos. Ele, preparado para a noite fria; ela se aninhando embaixo de parte do seu poncho. Suas mãos se encontravam e desencontravam, como deveria ser. A mão dela encontrava a barba dele enquanto a mão dele procurava o seu cabelo escondido sob o capuz. A expectativa criada antes de cada beijo causava arrepios. Uma tensão gostosa fazia com que eles tivessem cada vez mais vontade de estarem perto um do outro, assistidos apenas pelo céu cheio de estrelas. 

Entre um assunto e outro, se beijavam. Ele estava vivendo longe de casa, por opção própria. Ela só tinha aquela noite antes de voltar para a sua casa, também por opção própria. Naquela praça, em meio ao vinho, às palavras soltas ao vento e às pessoas que ali passavam, ela ouviu coisas que a fizeram refletir. Ele falava coisas que a interessavam. Ela o escutava atentamente e, de vez em quando, deixava seu ombro para olhá-lo com certa admiração. No seu íntimo, ela o achava corajoso demais por se aventurar daquela maneira, ainda que por tempo determinado.

O frio aumentava. Os corpos se entrelaçavam um ao outro cada vez mais. Ele exalava um cheiro bom de homem, de boas energias, de aventuras por vir. Ela exalava um cheiro bom de mulher, de redescobertas, de conquistas, de vontades.

Saíram da pracinha principal da cidade, de braços dados, caminhando pelas ruas de terra. Ele despertou nela vontades até então adormecidas; sede por aventuras, coisas novas. Ela, por sua vez, não queria que ele fosse embora. Queria que ele ficasse mais, que a noite não acabasse.

Ficaram juntos por mais tempo que ela imaginava (e menos do que gostaria). Ao se despedirem, trocaram beijos, carinhos, palavras e olhares. Como se já se conhecessem há tempos. Como se já tivessem percorrido todo aquele trajeto inicial de se conhecer alguém, sem que o estranhamento tivesse, de fato, acontecido. Sem falsas promessas, sem enganos passageiros.

Ele saiu caminhando pela rua de terra, naquela escura noite de segunda-feira. Andarilho, sozinho, foi ganhar e desbravar as novas estradas que a vida queria lhe apresentar. Carregava sua garrafa de vinho de um lado, seu violão de outro, o sorriso fácil no rosto, o coração cheio de amor e um monte de sonhos na cabeça.

Ela ficou parada no portão por mais alguns segundos, apenas assistindo-o ir, com vontade de pedir para ele ficar. Só mais um pouco. Só mais um gole. Talvez mais uma música. No entanto, já era tarde, já não havia mais volta. Abriu o portão para a sua antiga realidade, sem deixar de carregá-lo em sua memória e em seu coração.

Monday, May 02, 2016

E agora, Fernanda?

E agora, Fernanda?
O tratamento acabou,
a rotina recomeçou,
a vida seguiu,
a história ficou,
e agora, Fernanda?
e agora, você?
você que não sabe pra onde ir,
o que fazer,
você que sorri,
que ama, brinca?
e agora, Fernanda?

(trecho adaptado e, claro, sem qualquer pretensão de comparação, do poema de Carlos Drummond de Andrade: "José")

"Em pensar que a essa hora, no ano passado, não tinha um fio de cabelo nessa cabeça e hoje... olha como está cabeluda". Verdade, estou cabeluda, cheia de cachinhos - que ora me irritam, ora me divertem -, mas os cabelos são apenas a pontinha do iceberg que mora em mim. Já faz um tempo que venho pensando sobre o que tem acontecido na minha vida desde o ano passado. O tratamento acabou. A vida seguiu seu rumo. As coisas estão meio que voltando ao normal. E as pessoas, com certa frequência, me perguntam "como você se sente?", "agora tá tudo bem, né?" e eu, sozinha com os meus inúmeros pensamentos, não canso de me perguntar "E agora, Fernanda?"

Eu me pergunto isso, pois confesso que, por diversas vezes, me sinto um pouco mais perdida que o normal. "Normal" porque acho que, assim como eu, independente de doença ou não, todos nós nos deparamos com momentos de dúvida durante a vida. No meu caso específico, passei por um tratamento pesado e cheio de limitações e, por algum motivo desconhecido, pensei que, ao final, tudo ia mudar: que não ia mais repetir os mesmos "erros" do passado; que tinha aprendido tantas coisas; que não ia deixar mais que as pessoas se aproveitassem da minha boa vontade; que não ia mais trabalhar como antes; que ia voltar a fazer aulas de francês/jazz/natação; que, que, que... e por aí vai. No fim, acabei percebendo que as coisas realmente não são tão simples assim.

Percebi que não é porque abri as portas das reflexões internas que tudo se resolverá com um passe de mágica. As questões mudaram, é verdade, mas ainda existem e estão aí (e eu chego até a duvidar que algum dia elas acabarão). As questões são outras porque a vida é outra. A cada vez que me perguntam "mas o que mudou?" eu repito a pergunta pra mim durante dias e sempre encontro respostas diferentes.

Muitas coisas mudaram, sobretudo dentro de mim. A rotina, entretanto, voltou e, com ela, as preocupações, a vida no automático. Quando percebo, lá estou eu repetindo tudo aquilo que eu prometi pra mim que não faria mais. Lá estou eu trabalhando até tarde, adiando exame médico, me doando para coisas que deixaram de ser tão importantes para mim. Por outro lado, ainda que a vida tenha voltado a esse ponto "automático", o olhar passou a ser diferente. Hoje eu ao menos consigo distinguir o que funciona ou não funciona mais pra mim. Mais que a distinção, passei a assumir as minhas vontades, deixando um pouco o medo de lado, e "só" isso já faz uma baita diferença na minha vida. Claro que acabo sendo obrigada a fazer coisas que não gosto, afinal, faz parte da vida, mas acho que só de ter a consciência do que é bom ou não pra mim, já é um grande passo.

As mudanças vêm ocorrendo em doses homeopáticas. Eu percebo em mim uma permissividade e aceitação que antes não existiam. Eu tenho me permitido sentir mais, ser mais aberta com as pessoas, compartilhando um pouco do que eu sinto e das minhas vontades. Também acredito que eu passei a me olhar com mais amor e aceitação. É fácil? Nem um pouco. Acaba sendo um exercício diário, principalmente para uma pessoa que, assim como eu, nunca teve esses "auto-olhares". No entanto, nessa caminhada, eu venho percebendo o quanto toda essa bagunça na minha vida tem sido fundamental para eu fazer uma faxina interna e começar a notar o que, de fato, me traz felicidade, vivendo com paciência; um dia de cada vez.

Talvez as mudanças tenham que ocorrer em doses homeopáticas mesmo para que eu possa me acostumar com toda devastação que o furacão deixou pra trás. E eu não reclamo. Como já disse antes, acredito que nada acontece por acaso e comigo não ia ser diferente. A doença, o tratamento e o sofrimento passaram, mas a vida não. A vida continua aqui, se reconstruindo dia após dia.

E agora, Fernanda, o que será do amanhã? Não faço ideia, mas ando me esforçando para viver o hoje da melhor maneira possível. Que a vida é feita de escolhas, a gente já está cansado de ouvir (agora não posso mais fazer a piadinha infame "já está careca de ouvir"... hehehe), mas, apesar de clichê, é a mais pura verdade. O amanhã a gente se preocupa quando ele chegar. Hoje eu só escolho ser feliz!